domingo, 7 de junho de 2009

Com olhos de criança

Henri Matisse

O desenho é a possessão. A cada linha deve corresponder outra linha que faça um contrapeso, da mesma forma que se abraça, que se possui com dois braços. A vontade de possessão é mais ou menos forte segundo cada ser; há quem deseja frouxamente. (a Paule Martin, 1949-50)
"Criar é próprio do artista; onde não há criação, a arte não existe. Mas seria enganoso atribuir este poder criador a um dom inato. Em matéria de arte, o criador autêntico não é apenas um ser dotado; é um homem que soube ordenar para sua finalidade todo um facho de atividades cujo resultado é a obra de arte. É assim que para o artista, a criação começa na visão. Ver, isso já é uma operação criadora, que exige esforço. Tudo o que vemos na vida diária sofre mais ou menos a deformação produzida pelos hábitos adquiridos, e o fato é talvez mais sensível numa época como a nossa, onde o cinema, a publicidade e as revistas nos impõem cotidianamente um fluxo de imagens prontas que são um pouco, na ordem da visão, o que é o preconceito na ordem da inteligência. O esforço necessário para se desvencilhar disso exige uma espécie de coragem; e esta coragem é indispensável ao artista que deve ver todas as coisas como se as tivesse vendo pela primeira vez; é preciso ver toda a vida como quando se era criança; e a perda dessa possibilidade vos retira a de vos exprimir de uma maneira original, isto é, pessoal.
Para tomar um exemplo, penso que nada é mais difícil para um verdadeiro pintor do que pintar uma rosa, porque, para fazê-lo, é-lhe preciso primeiro esquecer todas as rosas pintadas. Aos visitantes que vinham me ver em Vence, eu muitas vezes perguntei: “Vocês viram os acantos, sobre os declives que margeiam a estrada?”. Ninguém os tinha visto; todos teriam reconhecido a folha de acanto sobre um capitel coríntio, mas ao natural, a lembrança do capitel impedia de ver o acanto. Ver cada coisa na sua verdade é um primeiro passo em direção à criação, e isto supõe um esforço contínuo.
Criar é exprimir o que se tem em si. Todo esforço autêntico de criação é interior. Ainda assim é preciso alimentar seu sentimento, o que se faz com a ajuda dos elementos tirados do mundo exterior. Aqui intervém o trabalho pelo qual o artista incorpora, assimila gradativamente para si o mundo exterior, até que o objeto que ele desenha tenha se tornado como parte dele mesmo, até que ele tenha em si e que possa projetá-lo na tela como sua própria criação.
Quando pinto um retrato, eu tomo e retomo meu estudo, e é cada vez um novo retrato que faço: não o mesmo que corrijo, mas um outro retrato que recomeço; e é cada vez um ser diferente que eu extraio da mesma personalidade. Tem me acontecido freqüentemente, para esgotar mais completamente meu estudo, de me inspirar em fotografias de uma mesma pessoa em idades diferentes: o retrato definitivo poderá representá-la mais jovem, ou sob um aspecto diferente daquele que ela oferece no momento em que posa, porque é este aspecto que me terá parecido o mais verdadeiro, mais revelador de sua personalidade.
O obra de arte é dessa forma o resultado de um longo trabalho de elaboração. O artista busca a seu redor tudo o que é capaz de alimentar sua visão interior, diretamente – quando o objeto que ele desenha deve figurar em sua composição – ou por analogia. Ele se põe assim em estado de criar. Ele se enriquece interiormente de todas as formas nas quais ele se torna mestre e que ele ordenará algum dia segundo um ritmo novo.
É na expressão deste ritmo que a atividade do artista será realmente criadora; ser-lhe-á necessário, para alcançar isto, tender para o despojamento mais do que para a acumulação de detalhes; escolher, por exemplo, no desenho, entre todas as combinações possíveis, a linha que se revelará plenamente expressiva, e como que portadora de vida; pesquisar estas equivalências pelas quais os dados da natureza se acham transportados para o domínio próprio da arte. Na “Nature morte au magnólia” ("Natureza morta com magnólia"), representei em vermelho uma mesa de mármore verde; em outro lugar, precisei de uma mancha preta para evocar o reflexo do sol no mar; todas estas transposições não eram nem um pouco o efeito do acaso, ou sabe lá de que fantasia, mas sim o resultado de uma série de pesquisas, em seguida das quais estas tintas me pareciam necessárias, visto sua relação com o resto da composição, para dar a impressão desejada. As cores, as linhas são forças, e no jogo dessas forças, no seu equilíbrio, reside o segredo da criação.
Na capela de Vence, que é o resultado de minhas investigações anteriores, eu tentei realizar esse equilíbrio de forças; os azuis, os verdes, os amarelos dos vitrais compõem no interior uma luz que não é, propriamente falando, nenhuma das cores empregadas, mas o produto vivo de sua harmonia, de suas relações recíprocas; essa cor-luz era destinada a brincar sobre o campo branco bordado de preto da parede em frente aos vitrais, e sobre a qual as linhas são voluntariamente muito espaçadas. O contraste me permite dar à luz todo o seu valor de vida, torná-la elemento essencial, aquele que colore, aquece, anima realmente este conjunto no qual importa dar uma impressão de espaço ilimitado apesar de suas dimensões reduzidas. Em toda essa capela, não há uma linha, um detalhe que não concorra para dar essa impressão.
É neste sentido, me parece, que se pode dizer que a arte imita a natureza: pelo caráter de vida que confere à obra de arte um trabalho criador. Então a obra aparecerá assim fecunda, e dotada desse mesmo frêmito interior, dessa mesma beleza resplandecente que as obras da natureza também possuem. É necessário um grande amor, capaz de inspirar e de sustentar esse esforço contínuo em direção à verdade, essa generosidade reunida a esse despojamento profundo que a gênese de toda obra de arte implica.
Mas o amor não está na origem de toda criação? "



(Idéias coletadas por Régine Pernoud, Le Courrier de l’ UNESCO, vol. VI, nº. 10, outubro de 1953.)

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