sábado, 31 de maio de 2008

Drummond em Prosa


Hoje não escrevo

"Chega um dia de falta de assunto. Ou, mais propriamente, de falta de apetite para os milhares de assuntos.
Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos. Os dedos sobre o teclado, as letras se reunindo com maior ou menor velocidade, mas com igual indiferença pelo que vão dizendo, enquanto lá fora a vida estoura não só em bombas como também em dádivas de toda natureza, inclusive a simples claridade da hora, vedada a você, que está de olho na maquininha. O mundo deixa de ser realidade quente para se reduzir a marginália, purê de palavras, reflexos no espelho (infiel) do dicionário.

O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida. Não apenas o sol, mas tudo que ele ilumina. Tudo que se faz sem você, porque com você não é possível contar. Você esperando que os outros vivam para depois comentá-los com a maior cara-de-pau (“com isenção de largo espectro”, como diria a bula, se seus escritos fossem produtos medicinais). Selecionando os retalhos de vida dos outros, para objeto de sua divagação descompromissada. Sereno. Superior. Divino. Sim, como se fosse deus, rei proprietário do universo, que escolhe para o seu jantar de notícias um terremoto, uma revolução, um adultério grego - às vezes nem isso, porque no painel imenso você escolhe só um besouro em campanha para verrumar a madeira. Sim, senhor, que importância a sua: sentado aí, camisa aberta, sandálias, ar condicionado, cafezinho, dando sua opinião sobre a angústia, a revolta, o ridículo, a maluquice dos homens. Esquecido de que é um deles.(...)"

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Homens e Pedras.


No meio do caminho


No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.


Poetas do Mundo - Brasil - Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987)


A Pedra no caminho


Toma essa pedra em tua mão,
toma esse poliedro imperfeito,
duro e poeirento. Aperta em
tua mão esse objecto frio,
redondo aqui, acolá acerado.
redondo aqui, acolá acerado.

Segura com força esse granito
bruto. Uma pedra, uma arma
em tua mão. Uma coisa inócua,
todavia poderosa, tensa,
em sua coesão molecular,
em suas linhas irregulares.

Ao meio-dia em ponto, na avenida
ensolarada, tu és um homem
um pouco diferente.

Ao meio-dia na avenida

tu és um homem segurando uma pedra.

Segurando-a com amor e raiva.

Poetas do Mundo - Moçambique - Rui Knopfli (1932 - 1998)

domingo, 25 de maio de 2008

...shhsssssssssss


"Quando o homem abre a porta da emoção

- e por insensatez

deixa marcas,

sofrimentos,

- se ele retornar

é para fechar as feridas.

Daí ele descobrirá

que ela não havia dado

todas as chaves."

(Esmeralda Ribeiro é escritora, jornalista e faz parte do Quilombhoje desde 1982.)
(matisse-bonheur-vivre)

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Pois é, Pra Quê?


O automóvel corre, a lembrança morre

O suor escorre e molha a calçada

A verdade na rua, a verdade no povo

A mulher toda nua mas nada de novo

A revolta latente que ninguém vê

E nem sabe se sente,

Pois é, pra quê?

O imposto, a conta, o bazar barato

O relógio aponta o momento exato

Da morte incerta, a gravata enforca

O sapato aperta, o país exporta

E na minha porta, ninguém quer ver

Uma sombra morta

Pois é, pra quê?

Que rapaz é esse, que estranho canto

Seu rosto é santo, seu canto é tudo

Saiu do nada, da dor fingida

Desceu a estrada, subiu na vida

A menina aflita, ele não quer ver

A guitarra excita

Pois é, pra quê?

A fome, a doença, o esporte, a gincana

A praia compensa, o trabalho, a semana

O chopp, o cinema, o amor que atenua

Um tiro no peito, o sangue na rua

A fome, a doença, não sei mais porque

Que noite, que lua, meu bem pra quê?

O patrão sustenta o café, o almoço

O jornal comenta, o rapaz tão moço

O calor aumenta, a família cresce

O cientista inventa uma flor 'que parece'

A razão mais segura pra ninguém saber

De outra flor que tortura...

No fim do mundo tem um tesouro

Quem for primeiro, carrega o ouro

A vida passa no meu cigarro

Quem tem mais pressa que arranje um carro

Pra andar ligeiro sem ter porque

Sem ter pra onde...

Pois é, pra quê?


(MPB4 - Sidney Müller)
(foto - Charles C. Ebbets )

terça-feira, 20 de maio de 2008

A criança é feita de cem

A criança tem Cem mãos,
Cem pensamentos e modos de pensar,jogar e de falar...
Cem, sempre Cem modos de escutar
as maravilhas de amar...
Cem alegrias para cantar e compreender,
Cem mundos para descobrir,
Cem mundos para inventar,
Cem mundos para sonhar...
A criança tem Cem linguagens
(e depois Cem, Cem e Cem)
Mas roubaram-lhe noventa e nove!!!
A escola e a cultura lhe separaram a cabeça do corpo.
Dizem lhe:De pensar sem as mãos,
de fazer sem a cabeça,
de escutar e de não falar,
de compreender sem alegrias,
de amar e maravilhar-se somente na Páscoa e no Natal.
Dizem lhe: que o jogo e o trabalho,
a realidade e a fantasia,
a ciência e a imaginação,
o céu e a terra,
a razão e o sonho
são coisas que não estão juntas...
Dizem-lhe que as Cem não existem.
A criança diz: ao contrário,
as Cem existem!!!

(Loris Malaguzzi)

...centésima postagem! (Vencendo alguns desafios).

domingo, 18 de maio de 2008

Amor de Índio

Tudo que move é sagrado
E remove as montanhas
Com todo o cuidado, meu amor.
Enquanto a chama arder
Todo dia te ver passar
Tudo viver a teu lado
Com arco da promessa
Do azul pintado, pra durar.
Abelha fazendo o mel
Vale o tempo que não voou
A estrela caiu do céu
O pedido que se pensou
O destino que se cumpriu
De sentir seu calor
E ser todo
Todo dia hei de viver
Para ser o que for
E ser tudo
Sim, todo amor é sagrado
E o fruto do trabalho
É mais que sagrado, meu amor.
A massa que faz o pão
Vale a luz do teu suor
Lembra que o sono é sagrado
E alimenta de horizontes
O tempo acordado, de viver.
No inverno te proteger,
no verão sair pra pescar
No outono te conhecer,
primavera poder gostar
No estio me derreter
Pra na chuva dançar e andar junto...
(Beto Guedes e Ronaldo Bastos)

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Positivismo

A verdade, meu amor mora num poço
É Pilatos lá na Bíblia quem nos diz
E também faleceu por seu pescoço
O autor da guilhotina de Paris
A verdade, meu amor mora num poço
É Pilatos lá na Bíblia quem nos diz
E também faleceu por seu pescoço
O infeliz autor da guilhotina de Paris
Vai, orgulhosa querida
Mas aprende esta lição
No canto incerto da vida
A vida sempre é o coração
O amor vem por princípio, a ordem por base
O progresso é que deve vir por fim
Desprezaste esta lei de Auguste Comte
E foste ser feliz longe de mim
O amor vem por princípio, a ordem por base
O progresso é que deve vir por fim
Desprezaste esta lei de Auguste Comte
E foste ser feliz longe de mim
Vai, coração que não vibra
Com seu pulo exorbitante
Transformar mais outra vida
Em dívidas flutuantes .
A intriga nasce nunca se é pequeno
Que se coma pra ver quem vai pagar
Para não sentir mais o seu veneno
Foi que eu já resolvi me envenenar.

(Positivismo= Noel Rosa e Orestes Barbosa)

Noel Rosa - "Um grande amor tem sempre um triste fim, com o pierrô aconteceu assim, levando este grande chute foi tomar vermute com amendoim".
(Fabulosa a capacidade de Noel em encontrar rimas, acima dele, só Camões e Bocage).
(Carlos H. Cony)

sábado, 10 de maio de 2008

"Há mar e mar, há ir e voltar"

Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra amigo!
Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
Amigo
(recordam-se, vocês aí, Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!
Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.
Amigo é a solidão derrotada!
Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser,
é já uma grande festa!

(Alexandre O’Neill )

domingo, 4 de maio de 2008

E dá-lhe PORCO!!!

..quando surge o ALVIVERDE imponente!!

Palmeiras CAMPEÃO - PAULISTÃO 2008!!!

Lágrima de Preta

Encontrei uma preta
que estava a chorar
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)e cloreto de sódio.

António Gedeão - poeta português

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Meu maio

A todos
Que saíram às ruas
De corpo-máquina cansado,
A todos
Que imploram feriado
Às costas que a terra extenua –
Primeiro de Maio!
Meu mundo, em primaveras,
Derrete a neve com sol gaio.
Sou operário –
Este é o meu maio!
Sou camponês - Este é o meu mês.
Sou ferro –
Eis o maio que eu quero!
Sou terra –
O maio é minha era!
(Vladimir Maiakovski)