quarta-feira, 22 de abril de 2009

Reminiscências...

"Não era possível que uma pessoa que me batera usasse agora uma voz tão doce e quase amiga. Achegou-se mais de mim e sem que ninguém esperasse, ajoelhou o corpo gordo e me fitou cara a cara. Tinha um sorriso tão suave que parecia espalhar carinho" .
"Aí eu me aproximei bem dele e encostei minha cabeça junto ao seu braço.
— Portuga
— Hum...
— Eu nunca mais quero sair de perto de você, sabe?
— Por quê?
— Porque você é a melhor pessoa do mundo. Ninguém judia de mim quando estou perto de você e sinto um “sol de felicidade dentro do meu coração”."
"Entretanto minha saudade era muito grande. O Portuga deveria estranhar a minha ausência e se ele soubesse realmente onde eu morava, era até capaz de me vir procurar. Fazia falta ao meu ouvido, à ternura do meu ouvido aquele jeito de falar meio carregado e cheio de “tu”."
"— Repita de novo a canção.
— É um tango da moda.
— “Eu quero uma mulher bem nua...”
Uma bofetada estalou no meu rosto.
— Canta de novo:
— “Eu quero uma mulher bem nua...”
Outra bofetada, outra, mais outra. As lágrimas pulavam dos meus olhos sem querer.
— Vamos, continua a cantar:
— “Eu quero uma mulher bem nua...”
Meu rosto quase não se podia mexer, era arremessado. Meus olhos abriam-se para se tornar a fechar com o impacto das bofetadas. Eu não sabia se devia parar ou se tinha de obedecer... (...)
Tomado de fúria, só então ele se ergueu da cadeira de balanço. Desabotoou o cinto. Aquele cinto que tinha duas rodelas de metal e começou a me xingar apoplético. De cachorro, de porcaria, de traste vagabundo, se era assim que falava do seu Pai.
O cinto zunia com uma força danada sobre o meu corpo. Parecia que o cinto tinha mil dedos que me acertavam em qualquer parte do corpo. Eu fui caindo, me encolhendo no cantinho da parede. Estava certo que ele ia me matar mesmo. (...) Ele jogou o cinto sobre a mesa e passou as mãos sobre o rosto. Chorava por ele e por mim.
— Eu perdi a cabeça. Pensei que ele estava caçoando de mim. Fazendo pouco caso."
Mas ela não sabia a revolução que se realizava dentro de mim. O que eu tinha resolvido. Iria mudar de filmes. Nada mais de filmes de cowboy, nem índio nem nada. Eu de agora em diante só iria ver filme de amor, como os grandes chamavam. Filme que tivesse muito beijo, muito abraço e que todo mundo se gostasse. Já que eu só servia para apanhar, poderia pelo menos ver os outros se gostarem. Chegou o dia que eu já podia ir para a Escola. Fui mas não para a Escola. Sabia que o Portuga passara uma semana me esperando com o “nosso” carro e naturalmente só recomeçaria a me esperar quando eu o avisasse. Ele devia estar muito preocupado com a minha ausência.
Você é meu amigo e foi por isso que eu pedi para passear no nosso carro que daqui a pouco vai ser só seu. Eu vim dizer adeus para você.
— Adeus?
— Sério. Você vê, eu não presto para nada, estou cansado de sofrer pancada e puxões de orelha. Vou deixar de ser uma boca a mais... Comecei a sentir um nó doloroso na garganta. Precisava muito de coragem para contar o resto.
— Vais fugir então?
— Não. Eu passei esta semana toda pensando nisso. Hoje de noite eu vou me atirar debaixo do Mangaratiba. Ele nem falou. Me apertou fortemente nos braços e me confortou do jeito que só ele sabia fazer. — Não. Não digas isso, por amor de Deus. Tens uma vida linda pela frente. Com essa cabeça e essa inteligência. Não digas assim que é pecado! Eu não quero nem que penses, nem que repitas isso. E eu? Tu não me queres bem? Se me queres e não estás mentindo, não deves falar mais assim. Afastou-se de mim e me olhou nos olhos. Passou as costas das mãos sobre as minhas lágrimas.
— Eu te quero muito, Pirralho. Muito mais do que tu pensas. Vamos, sorri.
Sorri meio aliviado com a confissão.
— Não, porque eu não sou rei e não mando nada. Eu sempre te pedirei as coisas.
— Mas você podia ser rei. Você tem tudo para ser rei. Todo rei é gordo como você. O rei de copas, o de espadas, o de paus e o de ouros. Todos os reis do baralho são bonitos como você, Portuga.
— E eu? Custou tanto para fazer você ficar do jeito que eu queria. Meus olhos ficaram covardemente cheios de lágrimas.
— Mas tu deves admitir que às vezes a gente também possa sonhar.
— É que você não me botou no seu sonho. Ele sorriu embevecido.
— Tudo que é sonho meu, Portuga, eu boto você. Quando saio pelas verdes campinas com Tom Mix e Fred Thompson, já aluguei uma diligência para você viajar e não se cansar muito. Você está em todo canto que eu vou. De vez em quando, na aula, eu olho pra porta e penso que você chega lá e me dá adeus..
O Mangaratiba não perdoava nada. Era o trem mais forte que havia. Vomitei mais umas duas vezes e pude ver que ninguém se incomodava comigo. Que não havia mais ninguém na vida. Não voltei para a Escola, fui seguindo o que o coração mandava.
Me fazia mal seu rasto barbado roçar no meu rosto. O cheiro que escapava da sua camisa muito usada me fazia arrepios. Fui escorregando pelos seus joelhos e caminhei para a porta da cozinha. Sentei-me nos degraus e contemplei o quintal com o morrer de todas as luzes. Meu coração se revoltara sem raiva. “Que quer esse homem que me pega no colo?” Ele não é meu pai. Meu pai morreu. O Mangaratiba matou ele.
Trecho do livro: Meu pé de Laranja Lima de José Mauro de Vasconcelos, 1968.

2 comentários:

  1. As tuas escolhas são sempre perfeitas, belo texto de um livro que li muitas e muitas vezes.
    Se fechares os olhos , estou certo que sabes escrever no minimo igual e sem "esforço ".

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  2. Que belas reminiscências... Lembro-me muito bem de quando eu li esse livro... E de quantas lágrimas derramei. Muito sensível!

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